terça-feira, 24 de setembro de 2013

Arvoredos - Relato de um velejador

Antes de entrar no verdadeiro relato do que aconteceu na regata, acho que vale a pena falar um pouco sobre a minha (pouca) experiência em navegação à vela. Eu adquiri o Goludo, um veleirinho oceânico, faz quase 2 anos. É meu primeiro barco e serve de escola para o que chamo de projeto “barco definitivo”. Desde pequeno sou ligado ao mar, meu avó era caiçara e motorista naval e meu pai foi mestre de barco de pesca quando jovem. Apesar disso, só consegui realizar meu desejo de ter um barco depois de muito tempo. Enquanto sonhava com esse dia, fiz cursos de vela, assisti documentários, li livros técnicos e romances e participei de vários grupos de discussão virtuais sobre o assunto. Três anos atrás fiquei sócio do CIR. Quem me recebeu de braços abertos foi o Raymond com quem tive o prazer de disputar algumas regatas antes mesmo de comprar o Goludo. E o Jera, lá do Inter é o faz tudo que sempre me dá uma mão quando preciso de um favor ou algum serviço.

O meu barco é um modelo Atoll de 23 pés (cerca de 7 metros) e já vai completar 40 anos. Apesar da idade, ele está muito bem cuidado, penso que foi uma sorte muito grande encontrar ele à venda já reformado e  justamente no CIR. Depois de comprá-lo, entusiasta que sou de eletrônicos, tratei de equipá-lo com uma monte de traquitanas. A minha habilitação atual é de Mestre Amador. Eu adoro velejar na companhia de amigos e familiares mas confesso que gosto na mesma medida de sair sozinho. Sou aprendiz, bem aprendiz mesmo, com toda humildade possível. Mas não sou nenhum orelhudo que caiu de paraquedas nessa de ser navegador.

A história da regata da Ilha dos Arvoredos começou pra mim em 2012 quando fui com o comandante Raymond no seu veleiro Pelikan. Nessa edição também fez parte da tripulação o Atila, comanda do veleiro Atrevida. Para um iniciante como eu não poderia ser melhor. A regata Volta da ilha dos Arvoredos é organizado pelo Iate Clube de Santos. É uma regata de percurso, com aproximadamente 20 milhas náuticas (37km) a serem percorridos em até 8h. Na ocasião a situação do tempo estava bem severa, com ondas de 2,5m e vento na casa de 20 nós (37km/h), se não me engano, durante toda a regata. O mar castigou o barco mas não muito a tripulação. A exceção foi um momento em que fui até a proa livrar a Genoa (vela de proa) e de repente me vi flutuando no ar. Tirando a pancada no pouso, não aconteceu mais nada. O barco, porém, teve que ir para manutenção.

Este episódio da regata 2012 para mim pareceu isolado. Parecia que a data da regata tinha caído em uma janela de tempo infeliz e que isso dificilmente aconteceria novamente. Mas aconteceu, e foi ainda pior. O que agora eu estou percebendo é que quando vamos velejar por lazer nós temos a opção de desistir diante de qualquer chance de dificuldade que o mar possa apresentar – até porque sempre temos alguma coisa para arrumar no barco, tarefa que pra mim é tão gratificante quanto velejar. Já em regata, a data é aquela, não tem muito o que pensar senão na tática diante da previsão do tempo e das marés. Concluindo, se fosse um dia de lazer eu não teria saído com o meu barco.

A previsão do tempo para a edição 2013 da Regata dos Arvoredos era clara, pelo menos pelo site do windguru: até 48 nós (!) na rajada de vento noroeste (aquele bem quente que vem de terra) logo pela manhã mas que no horário da largada já teria diminuído. Daí para o final da tarde e início da noite o vento iria rondar mas sempre fraco. Diante desse cenário eu já tinha quase certeza que não conseguiria finalizar a regata dentro do horário limite mas o tempo estaria bom e o que importava pra mim era a velejada. Fui então sozinho, pensando em deixar o barco leve e a cabeça livre para pensar na vida.

Na largada o vento parou quase por completo e alguns barcos ficaram boiando sem reação enquanto outros conseguiram despontar. O Goludo, é claro, ficou na dele, como que se recusando a ir para a disputa. Aos pouquinhos um ventinho fraco foi entrando e foi o suficiente para finalmente iniciarmos a regata. No percurso até a Ilha da Moela enfrentamos alguns momentos de total calmaria, com direito a tripulante de outro barco caindo na água para se refrescar. Enquanto isso, barcos e tripulações de ponta já sumiam no horizonte. De repente entrou um vento leste um pouquinho melhor e conseguimos chegar até a moela.

Eu e o Goludo até que estávamos indo bem. Eu pensava “vou chegar na moela na frente de alguns barcos! Hoje sim! Hoje sim... hoje... não.” Na minha santa estupidez de iniciante eu não sei se o vento miou novamente ou se entrei na sobra (de vento) da Ilha da Moela, mas o fato é que fiquei parado tentando entender se o vento vinha de um lado ou de outro da ilha enquanto meus colegas de pelotão já iam mais à frente em um bordo vencedor rumo à praia de pitangueiras.

Boiei muito ali. Cheguei a jogar a toalha. Almocei, bebi e mijei. Falei oi para uns golfinhos que, claro, me ignoraram. Mas pouco a pouco o Goludinho foi se livrando da ilha por fora. E de repente entrou mais um ventinho que variava de 7 a 10 nós (12 a 18km/h). A velejada voltou a ficar gostosa e pensei “será que agora vai?” Não, não foi. Nova calmaria. Nesse momento resolvi desistir da regata até porque não teria gasolina suficiente para voltar da Ilha dos Arvoredos se não houvesse vento. O relógio já marcava umas 16h e depois de uns 10 barcos terem pedido arrego pelo mesmo motivo, comuniquei minha desistência à CR (comissão de regata) por falta de vento. Enrolei a Genoa (vela de proa), deixei a vela mestra em cima e liguei meu fiel Honda de 5hp. Neste momento fiz um filminho que pode ser consultado aqui: http://www.youtube.com/watch?v=Gwy7qgckrQQ. Passei entre a ilha e o continente, onde estava a linha de chegada e dei um tchau para a CR.

Foi quando aconteceu. Mais à minha frente já iam uns 2 barcos também desistentes e eu os observava quando aquele mais à frente de repente inclinou e atravessou. Nuvens densas e brancas como algodão contornavam as montanhas à frente em velocidade e o mar ficou bem agitado. Corri e desci a mestra. Quando fui atingido pelo vento sudoeste tive dificuldade em manter o rumo mesmo a motor pois o vento vinha forte e bem de frente. O Honda foi acelerado ao máximo e mal dava 2 nós a toda aceleração enquanto o barco começou a lutar contra as ondas. Ficou claro pra mim que naquela situação que não teria tempo para chegar na ponta grossa com a quantidade de combustível que eu tinha levado.

Resolvi correr com o vento ao invés de enfrenta-lo e procurar algum abrigo. Havia um pesqueiro rumando para a Ilha da Moela e decidi fazer o mesmo e no caminho ainda cruzei com o veleiro H3+ velejando apenas de mestra rizada (diminuída) aparentemente com tudo sob controle. O H3+ é um veleiro típico de regata, bem maior e mais moderno que o Goludo e tem tripulação experiente. Ao me aproximar da parte oposta da Ilha da Moela percebi que a situação ali não estava nem um pouco melhor. Certamente a operação de lançar âncora naquelas condições de vento e mar, estando sozinho à bordo, me pareceu arriscada demais e abandonei a ideia. Voltei a correr com o vento, sem velas, e com o Honda apenas em “idle” (ligado mas sem estar engatado) agora em direção à península da praia da enseada.

O mar havia se transformado em um caos total e a noite começava a cair. Pelo autofalante do meu rádio no cockpit comecei a ouvir um sem parar de chamadas do Delta 21 pelos barcos e poucos respondiam. Outra estação (acho que Alpha 21) relatava problemas em diversas embarcações que participavam da regata e que estavam bem mais à frente de mim. Havia barco sem motor, sem hélice, sem gasolina. Outro a âncora garrava (arrastava) e várias ameaças de encalhe. Decidi então que deveria sair daquela situação velejando. Lembrei do H3+. E lembrei das discussões virtuais onde por diversas vezes o Arnaldo, mestre que confeccionou minhas velas, dizia que quando a situação aperta, o mais seguro é velejar. Me preparei então para subir a mestra rizada. Nunca tinha usado as velas nessa configuração e teria que fazê-lo nas piores condições possíveis.

Pelo menos eu havia preparado antecipadamente um kit de cabinhos para amarrar a sobra da vela que não iria subir. Apontei então o barco novamente na direção do vento e deixei o controle a cabo do meu piloto automático. Atropeladamente subi parte da vela mestra. Como não usei amantilho, a retranca ficou muito baixa, o que iria dificultar tremendamente as manobras dali em diante. Pior foi que o cockpit ficou perigoso demais com a retranca passando muito baixa a cada manobra. Daí em diante a cada bordo eu ficava concentrado na retranca e em não deixar a minha única manicaca ir para a água. Manicaca é a “manivela” que usamos nas catracas do barco para dar tensão nos cabos das velas.

A partir daí o barco começou a velejar um pouco, mas a velocidade ficou abaixo de 2 nós. Decidi então desenrolar um pouco da Genoa e daí o barco chegou perto de 3 nós. Naquelas condições, pra mim já estava bom. Eu rumava em direção à praia do tombo tendo a Ilha da Moela a bombordo (esquerda). A noite já havia caído. As chamadas no rádio ainda eram de arrepiar. Felizmente ninguém me chamou porque eu não teria como entrar na cabine para responder neste momento. Dei um bordo em direção ao canal que separa a Ilha da Moela do continente e ia acompanhando a evolução no GPS. Eu estava decidido a passar por ali, talvez por ter visto o H3+ passando por lá. O barco adernava terrivelmente e por vezes eu fiquei em pé na lateral dos assentos do cockpit.

Logo ficou claro que precisaria de alguns bordos a mais para terra para poder vencer o canal. A intenção era passar entre a ilhota do pau a pino e a costeira. Mas o barco derivava demais e quando me aproximei vi que não daria. Resolvi dar um bordo em direção à terra, mas o barco estolou e voltei à mesma direção. Daí soltei um f...-se se abri um pouco passando entre a ilhota e tendo o paredão da Ilha da Moela me ameaçando no bordo contrário. Qualquer coisa que desse errado neste momento poderia significar o fim do Goludo nas pedras da Ilha da Moela. Felizmente tudo deu certo e segui em direção ao mar aberto.

Durante todo esse tempo o meu medidor de vento dava 25 nós mas tenho certeza que era muito mais. O pessoal do clube comenta que chegaram a registrar 40 nós (cerca de 70km/h). A ondas deveriam ser enormes pois a todos momento eu era lavado no cockpit. A boca ficou seca devido à água salgada. Eu comecei a ficar fisicamente cansado mas a mente estava incrivelmente alerta. A cada momento eu repassava o que faria para cada uma das coisas eu achava que poderia dar errado. Só não sabia o que fazer caso o mastro viesse abaixo. Para esta situação eu iria avaliar no momento o que fazer.

Aos poucos a Ilha da Moela foi ficando pequena. Eu não sabia mais se o vento é que estava diminuindo ou se eu é que estava me acostumando com aqueles caos. O fato é que a minha Genoa tencionava e logo depois batia alucinadamente, provavelmente por causa do balanço. A mestra estava firme e com um shape bonito. Até agora não sei como a Genoa não rasgou. Foi chegando a hora de dar o bordo, quem sabe o derradeiro, em direção à ponta grossa. A manobra foi feita com perfeição, dado o contexto. Cheguei a me animar mas então comecei a ouvir um barulhinho agudo, do tipo daqueles sininhos de recepção de hotel. Eu sabia que não era coisa boa porque nunca tinha ouvido aquilo no meu barco. De repente um estouro de algo partindo. Foi-se o brandal de força, um dos 3 cabos de aço de bombordo que sustenta o mastro lateralmente. Pensei que seria o fim da luta e que o mastro deitaria.

Passados alguns segundos de perplexidade, não vi nada mais grave acontecer. Decidi então que era a hora de usar o motor. Aliviei a escota da mestra e enrolei a Genoa, aliviando o esforço no mastro. Chamei o Honda, que prontamente respondeu. Esgoelei o motorzinho e parti em velocidade alucinada em direção à ponta grossa. O barquinho agora subia as ondas e se estatelava lá embaixo. Mas o vento começou a ceder e ficou claro que o mastro não iria cair.

Eu usava um colete inflável manual e incrivelmente em nenhum momento senti medo de morrer, mas sim de perder meu barco. A bagunça dentro da cabine era inacreditável, tudo fora do lugar. Por vezes a bomba de porão era acionada mesmo sem água a bordo, pois o sensor do automático era levantado nas pancadas. Deixei o comando com o piloto automático (essa foi a aquisição mais fantástica para o barquinho) e finalmente fui ao rádio dar minha posição e situação. Comecei a pensar na gasolina, ou melhor, na falta dela. Eu havia saído com gasolina suficiente para um dia normal, não para aquelas condições. Na pior das hipóteses que iria ancorar nas proximidades do Sangava e esperar por ajuda. Mas o vento seguia diminuindo até atingir 3 nós na ponta grossa. A partir dali eu já me sentia são e salvo. Diminuí a rotação do motor ao mínimo e concluí que chegaria no clube “no cheiro”.

Ao adentrar no rio Icanhema e avistar o píer, minhas pernas começaram a fraquejar. Acho que era a adrenalina indo embora, não sei. Passei embasbacado pelo meu cantinho, um Delta 32 pés com seu mastro dobrado como se fosse de brinquedo. Aportei suavemente no píer do clube recebido pelo Willian que estava muito preocupado com a minha situação, principalmente por estar sozinho. Concluí que, no meu caso, foi melhor estar sozinho. Estar acompanhado, mesmo por algum tripulante experiente, teria diminuído ainda mais aquele cockpit já tão pequeno.

Depois do banho tomado, quando deitei na minha cama quentinha, ao lado da minha esposa, fechei meus olhos e me pus a pensar no que tinha vivido. Não conseguia dormir. Foi difícil acreditar que poucas horas atrás eu estava naquela situação caótica e que não havia restado nenhuma consequência mais séria para mim ou para a minha embarcação. Eu achava que deveria estar boiando em algum lugar escuro esperando por resgate. Certamente foi o maior sufoco que passei na minha vida. Fiquei abalado emocionalmente pois fui pego de surpresa, sem chance de me preparar para essa porrada. Acho que esta sim foi a maior lição que aprendi. Se depender de mim, em 2014 eu completo a regata dentro do tempo.

Jefferson Neitzke
Atoll 23 – Goludo – CIR – Santos